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O BOLSONARISMO É UM FASCISMO?

1. INTRODUÇÃO

Vivemos há décadas sob o paradigma de uma educação humanista que, em tese, tem entre seus objetivos esclarecer sobre os horrores da Segunda Guerra Mundial e impedir que eles se repitam. No mesmo período, entretanto, o uso banalizado do conceito de fascismo, sobretudo pela esquerda, acabou por reduzi-lo a mero insulto. O projeto educacional falhou, a banalização cobra seu preço, e a verdade é que o conhecimento desse fenômeno continua restrito a um punhado de especialistas.


O fascismo é uma ideologia e um movimento político surgido na década de 1920, na Europa, em meio à destruição da Primeira Guerra Mundial e a crise da democracia liberal. Movimentos fascistas despontaram em diversos países daquele continente – primeiro na Itália, onde o movimento ganhou seu nome; depois, na Alemanha, Espanha, Portugal, Áustria, Hungria, Croácia, Romênia... E também em países de outros continentes, inclusive o Brasil, com o integralismo. Se conseguirmos discernir as características em comum desses movimentos, suas ideias, táticas e estratégias e o contexto social, político e histórico de seu aparecimento, seremos capazes de chegar a uma teoria geral do fascismo, capaz inclusive de responder a uma questão que ainda hoje divide especialistas: o fascismo é um movimento específico das décadas de 1920 e 1930, ou ainda é possível no mundo contemporâneo?


Essa questão adquire um interesse especial no Brasil de hoje, diante da vitória de um candidato de extrema-direita, Jair Bolsonaro, nas eleições presidenciais de 2018. Ativistas e analistas políticos dividem-se diante da pergunta: seria o bolsonarismo um tipo de fascismo? Muitos insistem que essa comparação, embora corrente, é errônea. O objetivo deste artigo é responder a esta pergunta com toda a seriedade que ela merece. Para tanto, é necessário, primeiro, responder à questão mais ampla acerca do que é, afinal, o fascismo.


2. NOTA HISTORIOGRÁFICA

A noção de que a história não se repete (ou a anedota de que só se repete como farsa) é fundamentalmente anticientífica. A ciência é a busca de padrões na natureza, padrões que nos ajudem a antecipar o futuro, de modo que estejamos melhor preparados para lidar com os seus desafios, quando se apresentarem, sejam estes doenças, tempestades ou fenômenos políticos.


Sem uma abordagem científica, a história não passa de um apanhado de meras curiosidades ou a simples construção de uma narrativa. Negar a cientificidade da disciplina da história é negar sua relevância para compreender o nosso mundo e o que podemos aprender do passado para extrair lições para o futuro.


Por outro lado, o estudo historiográfico do fascismo ou de qualquer outro fenômeno social não pode partir de uma percepção estática da história, de que um fenômeno se repetirá sempre exatamente da mesma forma, ou estaremos diante de um fenômeno inteiramente novo. Esta visão estática é geralmente reproduzida como um antídoto ao anacronismo, um pecado capital para todo historiador. Não obstante, é ela mesma uma visão a-histórica e anacrônica: ignora o dinamismo dos fenômenos sociais tanto quanto a possibilidade de que as circunstâncias geradoras dos mesmos, com adaptações no tempo e no espaço, possam levar a resultados semelhantes.


No caso do bolsonarismo, indagar acerca das suas semelhanças com o fascismo não é o mesmo que afirmar (ou supor) que ele é (ou deve ser) idêntico ao fascismo dos anos 1920-30, nem que terá os mesmos resultados, mas sim procurar por aqueles padrões que permitam qualificá-los como fenômenos da mesma natureza. O fascismo no mundo contemporâneo não tem como ser idêntico ao fascismo daquela época: transformações sociais, tecnológicas, institucionais, não o permitem. Isto, contudo, não é o suficiente para dizer que o fascismo é um fenômeno datado, que jamais retornará. Significa apenas supor que, se ressurgir, será adaptado a esta nova realidade. Um exemplo: a democracia de massas é hoje muito maior, mais inclusiva, mais entranhada nos ritos e nas instituições. Isso significa que o autoritarismo fascista encontrará maior resistência, hoje, e precisará de mais consenso e menos violência para chegar ao poder.


Este exercício é importante para que possamos nos antecipar aos possíveis desdobramentos de um governo Bolsonaro, e montar uma estratégia para desarmar as bombas que ele venha a plantar para a democracia brasileira. Trata-se também de um alerta para que resgatemos o rigor e cientificidade na pesquisa histórica.


3. CARACTERÍSTICAS DO FASCISMO

Segundo o sociólogo Michael Mann (2008: 26-31), todo movimento fascista tem cinco características em comum:


Nacionalismo: o objetivo máximo de sua política é a grandeza da nação. Sua visão de nação é orgânica, ou seja, nela, todos têm uma função que deve ser observada. Isto implica que a hierarquia social deve ser estritamente imposta e respeitada, ao passo que a diversidade de valores, de pensamento, de modos de vida, não serão toleradas.


Estatismo: o Estado, como representante da nação, deve controlar todos os aspectos da vida, e deve ser fielmente obedecido – o Estado fascista é necessariamente autoritário. A figura do líder tem papel destacado, o que acaba levando ao culto da sua personalidade.


Transcendência: o ideal da nação, representada pelo Estado e personificada no líder, deve unir todos os cidadãos. Os indivíduos se realizam através da nação, não de si mesmos ou de qualquer identidade distinta. Não há espaço para a individualidade, nem para os conflitos sociais ou de classe.


Violência: a violência é o método para lidar com aqueles que divergem ou desviam da norma. Eles devem ser reprimidos ou eliminados. Ela também será aplicada contra aqueles que não pertencem à nação, e de alguma forma são vistos como uma ameaça, como os membros de outra etnia, caso dos judeus na Alemanha nazista.


Paramilitarismo: os fascistas não usavam apenas a polícia e o exército, como faria um governo autoritário comum. Eles organizavam-se paramilitarmente para tomar o poder do Estado e combater e intimidar seus inimigos. Na Alemanha, por exemplo, o Partido Nazista possuiu duas organizações paramilitares: as SA, depois substituída pelas SS. Sua função era fazer a segurança do partido e a confrontar seus inimigos. O Estado alemão, temeroso do avanço do comunismo, tolerava este paramilitarismo, embora ele fosse ilegal. Na Itália, as milícias fascistas combatiam os socialistas no campo e, com este fim, eram incentivadas pelos latifundiários italianos.


O historiador Robert Paxton (2008: 41-2) destaca outras características dos movimentos fascistas, dentre as quais pode-se destacar: o nacionalismo; o culto ao líder que encarna o “destino da nação”; o anti-intelectualismo e a exaltação dos instintos; o temor das forças disruptivas que ameaçam a nação com a sua decadência, ou até mesmo destruição, pela ação da esquerda e do “comunismo”, das vanguardas estéticas, dos inimigos internos e externos, da democracia liberal, do individualismo e de toda doutrina que ameaçasse a coesão nacional; este medo leva a um anseio de salvação e unificação nacional, uma purificação da nação contra os inimigos internos, que admite o uso da violência, como um recurso político aceitável e até louvável – a violência é “bela”; a aversão às minorias, seja porque ameaçam a unidade da nação, seja porque são “impuras”.


É importante ressaltar que o nacionalismo fascista não é nem exclusivamente, nem mesmo eminentemente econômico, mas sim étnico e cultural: enfatiza a união nacional e os valores necessários para promovê-la. Ele é movido a exortações patrióticas e esforços para exaltar e resgatar a grandeza de uma nação, e combater os fatores e sujeitos que contribuem para sua decadência.


Por fim, o fascismo é um movimento de massas, característica que o distingue de outros movimentos da direita tradicional


4. COMO OS FASCISTAS CHEGAM AO PODER?

Nenhum país precisa ser destroçado por uma Grande Guerra ou um Tratado de Versalhes para cair nas redes do fascismo. O que o fascismo requer para germinar, também segundo Paxton (2004: 43, 75, 82), é: uma democracia recente em que a cultura democrática não foi ainda consolidada; uma experiência prévia de governos de esquerda, que antes encarnavam o anseio de mudança que as pessoas transferem para o fascismo; essa esquerda desperta, por um lado, desilusão e, por outro, medo; o país vive uma crise econômica e de valores, uma crise que parece além do alcance da democracia e dos métodos de solução tradicional – ela requer uma solução nova e drástica.


Para ascender ao poder, os fascistas se valem de métodos de propaganda bastante característicos, que envolvem: o uso e difusão de teorias sobre conspirações internacionais, que reforçam o sentimento de que o país é alvo de uma grave ameaça – por exemplo, a existência de uma conspiração judaico-comunista para promover uma revolução mundial; a incitação à violência e exclusão dos “inimigos” da nação – por exemplo, os judeus; ataques contra uma elite maquiavélica que manobra com estes inimigos da nação em prol da conspiração internacional – por exemplo, os banqueiros judeus que financiavam a revolução mundial; ataques contra a imprensa e sua credibilidade, associada à difusão de mentira e desinformação, que amplificam o sentimento de alarme e pânico que suas teorias por si só já incitam - por exemplo, na Alemanha, o incêndio do Reichstag serviu de pretexto para que Adolf Hitler obtivesse do Parlamento poderes ditatoriais.


Os fascistas são rivais dos socialistas. Eles disputam o mesmo eleitorado (ou clientela): trabalhadores, classe média intelectualizada, militantes de esquerda, pessoas insatisfeitas com o sistema. Assim, os fascistas imitam os socialistas tanto na retórica radical quanto em parte dos seus métodos de propaganda. Essa imitação se dá com adaptações, claro. Por exemplo, enquanto os socialistas acreditam na “luta de classes” como motor da história, os fascistas defendem que o conflito primordial se dá entre povos ou “raças”. Por essas (e outras) semelhanças, mais tarde, a extrema-direita e até parte da direita dita liberal tentará vender a ideia de que os fascistas são de esquerda. Na verdade, isso acaba funcionando como outra forma de desinformação que mascara a ascensão de movimentos neofascistas.


Não obstante, a despeito do argumento falacioso de que “o fascismo é de esquerda”, quem impulsiona os fascistas ao poder são os conservadores e elites econômicas assustadas com o avanço (real ou presumido) do comunismo (Paxton, 2004: 98-104): o presidente conservador alemão convidou Hitler para ser chanceler, quando poderia ter montado outro gabinete; o rei da Itália convidou Mussolini para ser primeiro-ministro italiano, embora os fascistas italianos não tivessem maioria no Parlamento. O sentimento das elites políticas e econômicas da época é que a coalizão com os fascistas era necessária para conter os radicais da esquerda, e que estes poderiam ser facilmente manobrados por políticos mais experientes, e contidos pelas normas constitucionais vigentes. Assim, forma-se uma “aliança instável” entre conservadores e fascistas, que conduz ao seguinte dilema: radicalização, rumo a uma “revolução de direita”, ou normalização, convertendo-se em um regime conservador e autoritário convencional (idem: 111-5). Na Alemanha, prevaleceu a primeira alternativa, que arrastou consigo a Itália; na Hungria, Espanha, Portugal e outros países, impôs-se a segunda solução.


5. RESPONDENDO À PERGUNTA: O BOLSONARISMO É UM FASCISMO?

Depois desta caracterização do fascismo, fica mais fácil avaliar as semelhanças do bolsonarismo com este movimento.


Em primeiro lugar, é importante destacar que as condições históricas que levaram ao surgimento do fascismo na Europa são bastante semelhantes às do Brasil de 2018. O país nunca teve uma experiência democrática de longa duração. Para os padrões atuais, chega a ser mesmo questionável se o período entre 1945 e 1964, embora constitucional e eleitoral, fosse mesmo uma democracia, já que uma grande parcela da população estava excluída da participação política. O período democrático de 1988 testemunhou uma inclusão social, política e econômica sem precedentes, mas essa inclusão, num país com uma cultura democrática subdesenvolvida, traz consigo os riscos de crise, instabilidade e radicalização. Pela primeira vez na sua história, um partido de esquerda com inserção nas massas, o Partido dos Trabalhadores (PT), chegou ao poder pelo voto, em 2002, encarnando grande expectativa de mudança, não só nas estruturas sociais, mas também políticas – já naquela época havia uma percepção de que a corrupção corroía as instituições. Após uma década de bonança, a desilusão com o PT começou a se impor em 2013, o governo corroído por sucessivos escândalos de corrupção e insatisfação com os serviços públicos. Um movimento de contestação surgiu e caminhou cada vez mais para a direita. Após a deposição da presidente Dilma Rousseff por um impeachment, em 2016, com a esquerda fora do poder, foi a sua hegemonia cultural – os valores da inclusão, do Estado-previdência, do respeito à diversidade e da promoção dos direitos das minorias – que passou a ser atacada. É possível e necessário formular críticas à forma como essa hegemonia cultural da esquerda foi construída, mas o ataque da direita não se ateve a isso: ela mirou o próprio consenso inclusivo e igualitário que a esquerda, no poder, tentou construir. Não é de se surpreender que essa contestação, na sua forma mais radical, viesse a se constituir não como alternativa, mas como antípoda: não um questionamento da visão que a esquerda tem de inclusão, direitos humanos, diversidade, etc., mas negação desses valores em si, aos quais se contrapõe uma visão de mundo hierárquica, conservadora, tradicionalista e religiosa, que seria o verdadeiro alicerce da identidade nacional.


Destacada a semelhança de contexto, podemos avaliar até que ponto o movimento que sustentou a ascensão política de Jair Bolsonaro assemelha-se aos movimentos fascistas clássicos. Para tanto, retomemos a tipologia de Michael Mann:


Nacionalismo: o patriotismo, a nostalgia da grandeza do Brasil, manifesta sobretudo no período militar (1964-1985), a exaltação dos valores tradicionais da nação, estão sem dúvida na base do bolsonarismo, são o seu alicerce ideológico.


Estatismo: Jair Bolsonaro, assim como os líderes fascistas clássicos, encarna o destino da nação, à frente de um ideal de governo de corte autoritário nos valores, costumes, na repressão à criminalidade e à divergência – sendo muitas vezes difícil discernir, no discurso do candidato, a diferença entre o criminoso e o opositor político.


Como dito anteriormente, é virtualmente irrelevante, para a tipificação do fascismo em Bolsonaro, que o nacionalismo e estatismo (ainda) não se manifestem na esfera econômica. A economia é um meio, não um fim. O fim, para o fascismo, é a construção da nação como um todo orgânico, unificado em torno de certos valores, do qual nenhum cidadão poderá escapar, aos quais todos devem submeter-se.


Transcendência: o bolsonarismo elege, como seus inimigos internos, a criminalidade, a esquerda e as minorias. O grande desafio à unidade nacional almejada por Bolsonaro não vem, diferentemente dos casos clássicos, do individualismo liberal – num país onde a tradição liberal é fragilíssima – mas das identidades das minorias, que minam a identidade nacional, rivalizam com esta.


Violência: fica claro no discurso de Bolsonaro que a violência não é um tabu, mas um recurso legítimo para alcançar o fim de pacificação, ordem social e unidade nacional. O recado, dado pelo próprio presidente eleito, é claro: “as minorias que se adequem, ou desapareçam”; aos que desafiarem os valores da nação, resta apenas o exílio ou a cadeia. E, dado o apoio ostensivo de Bolsonaro à violência policial, sobra ainda uma alternativa não diretamente verbalizada, e típica do fascismo: a eliminação física.


Paramilitarismo: militantes da extrema-direita usam como “álibi” para negar o caráter fascista do bolsonarismo a defesa que seu líder faz do armamentismo civil – dado que o fascismo seria antiarmamentista. Na verdade, como visto, o paramilitarismo fascista desafia o monopólio estatal do uso da violência legítima, e a ideia de que o nazifascismo era antiarmamentista não passa de uma interpretação espúria da história, fomentada pelo lobby da indústria de armas estadunidense. Além do armamentismo civil poder ser um atalho para a constituição de milícias privadas no campo e nas cidades, o próprio presidente eleito já defendeu, em seus discursos, que este seja o caso: que proprietários de terra se armem para combater o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra; que as milícias que privatizam a segurança nas grandes cidades sejam legalizadas; e que grupos de extermínio possam agir no combate à criminalidade.


Os métodos de propaganda bolsonarista também são bastante similares aos dos fascistas clássicos. Eles também difundem teorias conspiracionistas sobre um movimento comunista internacional, financiado pelo investidor George Soros; tratam adversários políticos e criminosos como inimigos da nação, não protegidos pelos direitos e garantias constitucionais (“direitos humanos para humanos direitos”); apontam para uma parte da elite política nacional como a ponta de lança desse movimento comunista, corrupto, que enriquece de forma ilícita, oprime o povo brasileiro e desrespeita seus valores religiosos e conservadores; esse ataque dirige-se também à imprensa, aos artistas e intelectuais, que formam o grupo, igualmente corrupto, de ideólogos que constroem o consenso em torno dos valores esquerdistas; contra estes inimigos, mobiliza-se um exército de ativistas virtuais que não hesitam antes de espalhar boatos, mentiras e incitar o pânico. Essa tática foi empregada com sucesso, primeiramente, na greve dos caminhoneiros de maio de 2018, prevendo e ao mesmo tempo reivindicando uma intervenção militar que depusesse o governo civil; e foi a base da campanha vitoriosa de Bolsonaro nas eleições, abusando da difamação contra os adversários, sobretudo Fernando Haddad, do PT; e incitando a suspeição contra a imprensa e o próprio jogo eleitoral, insistindo, contra todas as evidências, na alegação de fraude nas urnas, assim mantendo sua militância sempre mobilizada, empenhada em conquistar mais adeptos e em drenar qualquer apoio a candidatos mais moderados, que também seriam cúmplices da corrupção não só econômica, mas eleitoral, moral, corrupção esta que oprime o povo e concorre para a decadência da nação.


O bolsonarismo também é um movimento de massas, e nesse sentido bem distinto de outras ondas autoritárias de direita que já varreram o país. Mesmo quando estas tiveram respaldo popular, as massas não participavam diretamente do processo político, no máximo eram mobilizadas, pontualmente, para demonstrações que prestassem apoio e legitimidade a um movimento de elite. Foi assim, por exemplo, na Marcha da Família com Deus pela Liberdade, de 1964. O bolsonarismo, por sua vez, trilha um caminho atípico. Como no fascismo clássico, ele se constrói através de uma relação direta e espontânea entre o líder e seus seguidores, movimento que a elite política e econômica adere, em vez de conduzir.


Jair Bolsonaro, assim como no caso dos líderes do fascismo clássico, também não era a opção preferencial das elites políticas e econômicas. Mas, à medida que ele foi se mostrando um candidato viável, capaz de romper com a sequência de vitórias eleitorais do PT e, no segundo turno, restou como única alternativa para prevenir mais uma vitória da esquerda, Bolsonaro quebrou a desconfiança de uns, conquistou a adesão oportunista de outros e, por fim, o apoio relutante de outros tantos interessados numa política econômica mais liberal e um governo à direita, mais conservador nos valores, e capaz de conter o que grande parte da sociedade brasileira percebia como a ameaça da instalação de uma ditadura de esquerda no Brasil, especialmente diante do exemplo provisto pelo vizinho, a Venezuela – cujo regime ditatorial conta com a solidariedade do Partido dos Trabalhadores.


Diante de tais convergência entre valores, medos, táticas e retórica, dentro de um contexto histórico propício, conclui-se que as semelhanças permitem definir o bolsonarismo como uma espécie de fascismo. Essa conclusão não é dependente dos desdobramentos do processo. Se, num horizonte mais otimista, o bolsonarismo não conseguir consolidar-se no poder, ou as instituições tiverem sucesso em conter seus arroubos autoritários; ou se, numa hipótese mais pessimista, mas ainda não catastrófica, ele degenerar “apenas” num autoritarismo conservador, isso não mudará o fato de que ele viabilizou-se eleitoralmente a partir de uma coalizão onde o pensamento e a prática típicos do fascismo desempenhou papel destacado.


6. OBJEÇÕES

Algumas objeções são constantemente levantadas contra a definição do bolsonarismo como uma variante do fascismo:


O bolsonarismo não se apresenta como um movimento partidário, fardado, armado. Essa objeção considera especialmente o caso do nazismo e ignora as diferenças de contexto histórico e político, por exemplo, que hoje em dia as redes sociais e o ativismo voluntário desempenham um papel muito mais destacado que os partidos políticos, que contam com muito pouca legitimidade e capacidade de mobilização, na sociedade brasileira. Também ignora que, neste espaço virtual, os bolsonaristas valem-se de táticas flagrantemente ilegais e autoritárias, como é típico dos fascistas. Um exemplo disso foi quando hackearam a página do Facebook, Mulheres Unidas contra Bolsonaro.


Bolsonaro elegeu-se com uma plataforma liberal na economia, o que é contrário à ideologia fascista. Em primeiro lugar, isso não é inédito: para atrair o apoio de industriais, Benito Mussolini também moderou seu discurso estatizante e defendeu postulados liberais, antes de ser nomeado primeiro-ministro. Em segundo lugar, como já foi dito, o nacionalismo fascista é sobretudo étnico e cultural, e os fascistas não demonstram muito apreço pela verdade. A conversão muito recente e claudicante de Jair Bolsonaro ao liberalismo econômico é contraditória e não merece crédito de nenhum analista sério. Ele terá que provar suas credenciais liberais, contra décadas de discurso estatizante, no poder.


Dizer que o bolsonarismo é um fascismo implica acusar 57 milhões de brasileiros de também o serem. Esta objeção é a mais falaciosa de todas. Assim como as quatro vitórias sucessivas do PT em eleições presidenciais não implicam que a maioria dos brasileiros fosse socialista ou de esquerda, mas sim que confiaram nos líderes e programas do PT, o mesmo vale agora para Jair Bolsonaro. Nenhum movimento político viabiliza-se apenas pela adesão ou conversão de seguidores fiéis, mas pela persuasão de eleitores independentes, que decidem dar-lhe um voto de confiança.


Nem Bolsonaro, nem seus seguidores, nem seus eleitores, se veem como fascistas; quem é você para assim classificá-los, à sua revelia? Isso é uma versão de esquerda da falácia do espantalho, é o mesmo que a direita chamar qualquer um que deles diverge de “comunista”. Como destaca Paxton (2004: 16), o fascismo, diferente do comunismo ou do liberalismo, não é uma ideologia coerente, baseada numa filosofia sistematizada, mas uma reunião de “paixões mobilizantes” (idem: 41-2), ideias genéricas de vitimização, decadência, redenção, união e grandeza nacional, que são “detonadas” em situações de crise institucional. O fascismo é uma ideologia sui generis, onde o instinto prevalece sobre a razão. Essas paixões podem ser mobilizadas, de tempos em tempos, e somente através da abstração teórica é possível entendê-las como parte de uma guinada de parcela da sociedade rumo a este movimento que convencionou-se chamar de fascismo. É, portanto, para essas paixões e esse contexto que devemos olhar para entender e diagnosticar o fascismo – não para a autoimagem dos integrantes deste movimento.


A extrema violência que caracteriza o fascismo está ausente no bolsonarismo. Tal objeção ignora dois fatores. O primeiro, já destacado, do contexto histórico, que pode servir para minimizar os elementos mais grotescamente violentos do fascismo – a tecnologia, que deslocou uma boa parte da esfera pública para as redes sociais, e que aumentou a capacidade de vigilância e regulação do Estado da vida privada e construção de consenso, dispensando medidas mais diretamente repressivas. O segundo, que se está comparando a fase de ascensão do bolsonarismo, quando a violência é menor, com a fase de radicalização do movimento, após sua chegada ao poder, e mais especificamente no caso do nazismo, que foi o fascismo mais bem-sucedido – e que não é o único desdobramento possível de um movimento fascista. Em suma, esta objeção não se sustenta por comparar o bolsonarismo com uma fase posterior e não-inevitável do fascismo.


Esses objetores erguem bastante alto a barreira a ser transposta para se qualificar um movimento como fascista. Parecem não admitir nada abaixo de um Holocausto, para isso. Na verdade, além de a-histórica e anacrônica, essa análise do fascismo esconde a tentativa de desviar o foco da discussão, desqualificá-la. Vindo, como tem sido em muitos casos, de analistas identificados com os espectros conservador e liberal da sociedade, acaba funcionando como uma forma de legitimação e normalização do fenômeno do bolsonarismo, e como um salvo-conduto para aderir, mesmo que de forma relutante, ao movimento, sem sentir-se cúmplice e corresponsável por qualquer radicalização autoritária que, embora não seja inevitável, tampouco é um risco que se possa minimizar.


7. CONCLUSÃO

A conclusão que este artigo oferece é que o bolsonarismo preenche todos os requisitos necessários para a definição de um movimento fascista. Não se pode esperar que o bolsonarismo ou qualquer outro movimento contemporâneo apresente-se como uma reencenação do movimento fardado, cheio de símbolos, com os mesmos trejeitos e os mesmos inimigos dos anos 1920 e 1930, para que se defini-lo como fascista. Quem esperar o retorno do fascismo exatamente como ele foi no passado está tomando a forma pelo conteúdo, e está incorrendo, aí sim, em anacronismo grave. Além disso, nenhum fascismo assim importado terá sucesso, pois não responderá às particularidades da sociedade em que se insere. Para ser abraçado por uma sociedade, o fascismo precisa incorporar elementos de sua cultura, história, mitologia, dos problemas que ela enfrenta. É preciso olhar para o fascismo além da caricatura para efetivamente compreendê-lo e compreender como se adapta a diferentes sociedades e momentos históricos.


Dizer que o bolsonarismo é um fascismo não é uma hipótese sobre o futuro, mas sim um diagnóstico do presente, que não depende de desdobramentos específicos, nem implica qualquer tipo de fatalismo histórico. Mesmo que esse fascismo, futuramente, não chegue à sua conclusão mais lógica e radical, e mesmo que essa conclusão lógica e radical – uma onda de violência cataclísmica e genocida – não seja mais necessária, e o fascismo encontre meios menos traumáticos de se consolidar e esgotar. Isso também não implica, portanto, uma previsão catastrófica do futuro – embora implique, sim, uma previsão de prolongamento de crise e deterioração da democracia brasileira, que pode levar (ou não) a uma ruptura institucional. A história, como ciência, não pode, diferente de uma ciência exata, prever o futuro com exatidão. Mas pode apontar tendências, que por sua vez podem motivar respostas mais precisas para os dilemas sociais e políticos de uma sociedade. A história não pode antecipar a morte da democracia, mas pode apontar que ela trilha um caminho perigoso e potencialmente letal. É este o caso do Brasil sob a égide do bolsonarismo.


Esta conclusão tampouco remove de nós, sujeitos históricos, a responsabilidade pelo que advier daqui para a frente. Da história jamais se pode abstrair este último fator: a liberdade humana. Que nós a empreguemos com sabedoria, para preservá-la, sempre e a cada instante.


BIBLIOGRAFIA

MANN, Michael. Fascistas. Tradução de Clóvis Marques. Rio de Janeiro: Record, 2008.

PAXTON, Robert O. The Anatomy of Fascism. New York: Vintage, 2004.

[1] Bacharel em história pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, mestre em Relações Internacionais pela Universidade Federal Fluminense, doutor em história pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro.




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